domingo, 20 de março de 2011

"...os discípulos apenas viram Jesus e mais ninguém.” (Mt 17, 8). “…apenas Jesus…” (Mt 17, 8), nesta expressão, que conclui a narrativa da Transfiguração encerra-se todo um programa de vida. É óbvio que, “…apenas Jesus…” (Mt 17, 8) não significa que possamos deixar de lado o Pai e o Espírito Santo e sim que Jesus é o único lugar no qual Deus-Trindade se manifesta operante e plenamente aos homens. Significa que ninguém vai ao Pai a não ser por meio d’Ele, por meio de Jesus (cf. Jo 14, 6). “Apenas Jesus…” (Mt 17, 8), os pensamentos, projectos e preocupações inúteis voam para longe, fazendo-se no coração um profundo silêncio e uma paz profunda (cf. CANTALAMESSA, Raniero, “O Mistério da Transfiguração”, Edições Loyola, São Paulo, 2001, pgs. 36-37), porque habitado por Deus, Aquele Deus de que temos “absoluta necessidade”, de que temos uma “sede abrasante”.
Entusiasmados e plenamente convencidos da oportunidade evangélica, bem como da necessidade, para a Igreja e para o mundo, do apelo lançado pelo venerável papa João Paulo II, na Novo Millennio Ineunte, aos cristãos do Terceiro Milénio: mais do que “falar” de Deus, “mostrar” Deus: “…sem se darem conta, pedem aos crentes de hoje não só que lhes «falem» de Cristo, mas também que de certa forma lh'O façam «ver». E não é porventura a missão da Igreja reflectir a luz de Cristo em cada época da história, e por conseguinte fazer resplandecer o seu rosto também diante das gerações do novo milénio?” (NMI, 16), lançamo-nos na “Divina Aventura” de responder positivamente a este apelo. Por isso, conduzidos pelo Espírito Santo ao Deserto (cf. Mt 4, 1) do Monte Santo da Transfiguração e pela contemplação, permanecemos com o olhar fixo no Rosto do Senhor Jesus, que é fonte de eficácia apostólica e força de caridade fraterna.
Como no tempo de Jesus, a Humanidade de hoje “procura” e “tem sede” de Deus. E, mesmo que disso não tenha consciência, precisa e quer que os discípulos de Jesus lhe mostrem o Senhor. Como Tomé, só acredita se vir, na vida dos discípulos, as marcas do Ressuscitado: “Se eu não vir o sinal dos pregos nas suas mãos e não meter o meu dedo nesse sinal dos pregos e a minha mão no seu peito, não acredito” (Jo 20, 25). Que ela, a Humanidade O reconheça, com Ele se encontre e pelo Seu Amor se deixe tocar, é um dos apelos mais profundos que brotam nosso coração, pois “Jesus é verdadeiramente o único tesouro que temos para dar à humanidade" (Bento XVI, em Lurdes, a 31 de Maio de 2010).
Não só a Humanidade “procura” e “tem sede” de Deus, como Deus nos procura e quer necessitar e ter sede «Tenho sede!»” (Jo 19, 28) do nosso amor, pelo que, vem ao nosso encontro, faz-se Emanuel, Deus-Connosco e nos questiona do nosso amor por Ele: “«…tu amas-me mais do que estes?» …tu amas-me? ...tu és deveras meu amigo?»” (Jo 21, 15-17). Diante deste Mistério de Amor, só podemos sentimo-nos chamados a saciar a sede que Deus tem do amor da Humanidade, do “nosso” amor, votando-Lhe um amor generoso, voluntário, gozoso, exclusivo e total. Com a Bem-aventurada Chiara Luce Badano dizemos: “Agora não tenho mais nada, porém ainda tenho o coração e com ele posso amar!" Um amor por Deus que é total e radical, porque envolve o corpo, a carne (cf. Sl 84[83], 3), a inteligência, os afectos… em suma, uma vida que grita: “ para mim, viver é Cristo” (Fl 2, 21), para mim viver, é amar Cristo: “De alma me consagrei, e todo o meu haver, ao Seu serviço. Já não guardo a grei nem tenho outro ofício, porque é, somente, amar meu exercício." (São João da Cruz) Deus chama por amor, e é por amor que deseja ser correspondido. Só quem ama se entrega para sempre.
No mistério da Transfiguração, a Igreja não celebra apenas a Transfiguração de Cristo, mas também a sua própria: “…transformai-vos pela renovação de vosso espírito” (Rm 12, 2).
Contemplando, em Cristo Transfigurado, a glória Divina, tornamo-nos o espelho em que Cristo gosta de reflectir essa mesma glória Divina. Pois contemplando, reflectimos aquilo que contemplamos: “Permanecendo simples e amorosamente na Sua presença para que possa reflectir em nós a Sua própria imagem como se reflecte o sol no límpido cristal" (Beata Isabel da Santíssima Trindade). Tornamo-nos naquilo que contemplamos. Contemplando, somos transfigurados na imagem que contemplamos. Contemplando Cristo, nós nos tornamos semelhantes a Ele, conformamo-nos a Ele, fazemo-nos um só espírito com Ele (cf. Regra (OIC) de Júlio II, 30), consentimos que o Seu mun­do, os Seus propósitos e os Seus sentimentos, a Sua vida se imprimam em nós, que substituam os nossos pensamentos, propósitos e sentimentos… a nossa vida, tornando-nos assim semelhantes a Ele, como diz São João da Cruz “… tenha sempre a alma o desejo contínuo de imitar a Cristo em todas as coisas, conformando-se à sua vida que deve meditar para saber imitá-la e agir em todas as circunstâncias como ele próprio agiria" (São João da Cruz). Contemplando o Seu “Rosto” vamo-nos deixando, por Ele, “despir das obras das trevas e revestir das armas da luz” (Rm 13, 12), com vista a dizer com o apóstolo Paulo: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20) e “… para mim, viver é Cristo…” (Fl 2, 21).
O Tabor, não consiste num simples retorno imaginativo, fantasioso e poético a um lugar geográfico, ele é antes de tudo, uma forma muito real e concreta de viver em Deus, de mergulhar no Seu Coração, de contemplar o Seu Rosto e de permitir que ele plasme em nós a Sua Imagem, conforme a nossa vida com a Sua, nos transforme verdadeira e activamente em Sua “imagem e semelhança” (cf. Gn 1, 26-28), de forma a podermos dizer com São Paulo: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20).
Todos os baptizados, procuramos fazer a experiência viva de Cristo, o Verbo da Vida: vê-lO com os olhos, escutá-lO com os ouvidos e tocá-lO com as mãos (cf. 1 Jo 1,1). Este, é, contudo, um caminho de fé: “O rosto, que os Apóstolos contemplaram depois da ressurreição, era o mesmo daquele Jesus com quem tinham convivido cerca de três anos e que agora os convencia da verdade incrível da sua nova vida, mostrando-lhes «as mãos e o lado» (Jo 20,20). Certamente não foi fácil acreditar. Os discípulos de Emaús só acreditaram no fim dum penoso itinerário do espírito (cf. Lc 24,13-35). O apóstolo Tomé acreditou apenas depois de ter constatado o prodígio (cf. Jo 20, 24-29) (NMI, 19)

sexta-feira, 18 de março de 2011

Beata Chiara "Luce" Badano

"Eu redescobri o Evangelho.

Agora quero fazer deste magnífico livro
a única meta da minha vida."

"Agora não tenho mais nada,
porém ainda tenho o coração
e com ele posso amar!"


quarta-feira, 9 de março de 2011

Quarta-feira de Cinzas
Queridos irmãos e irmãs,
Hoje está prevista, na celebração da Eucaristia, o rito da imposição das cinzas. Trata-se de um sinal que nos recorda a nossa condição de criaturas e nos convida à penitência e à conversão, para nos configurarmos cada vez mais com Cristo. A Igreja sabe que, à nossa fragilidade humana, custa fazer silêncio e parar diante de Deus, tomando consciência da nossa condição de criaturas que dependem d’Ele e necessitam do seu perdão. Por isso, na Quaresma, a Igreja convida a uma oração mais fiel e intensa e à meditação mais demorada da palavra de Deus. As leituras, que ouviremos na Missa dos próximos domingos e às quais vos convido a prestar especial atenção, propõem-nos o itinerário baptismal que, na tradição antiga, percorriam os catecúmenos – aqueles que se preparavam para o baptismo. Meditando-as, queremos reavivar em nós o dom, as exigências e os compromissos deste sacramento, que está na base da nossa vida cristã, a vida de ressuscitados com Cristo.
Papa Bento XVI,
aos peregrinos de língua Portuguesa,
Audiência Geral de 9 de Março de 2011,
Quarta-feira de Cinzas
(Sala Paulo VI)
Mensagem para a Quaresma de 2011 do Arcebispo de Évora
Se quisermos receber, temos que dar!
A Quaresma foi instituída com a finalidade de preparar os cristãos para a celebração do mistério pascal, centro e fonte de toda a vida litúrgica. Nos primeiros séculos da sua vigência esteve intimamente associada à preparação dos catecúmenos para o Baptismo e constituía mesmo a última etapa dessa preparação, que culminava com a celebração do Baptismo no decorrer da Vigília Pascal.
Quando se generalizou o Baptismo das crianças, esbateu-se o carácter baptismal da Quaresma, que passou a ser entendida como tempo de consciencialização e actualização da graça baptismal, através da conversão espiritual e da prática do sacramento da Penitência. Mas o II Concílio do Vaticano restaurou o catecumenado dos adultos e propôs que se utilizassem mais abundantemente os elementos baptismais próprios da liturgia do Baptismo (SC, 109), com a dupla finalidade de proporcionar aos catecúmenos, cada vez mais numerosos, a preparação próxima para o Baptismo e de ajudar os que foram baptizados na infância a consciencializar o dom maravilhoso da graça baptismal, através das leituras proclamadas nas celebrações da Eucaristia e dos ritos litúrgicos próprios do itinerário catecumenal.

Com efeito, as leituras que este ano usaremos nos domingos da Quaresma mostram como a graça baptismal nos purifica do pecado de origem e nos dá força para lutarmos contra os dominadores deste mundo tenebroso (Hb 6,12); nos permite subir a um alto monte (Mt 17,1) para acolher de novo, em Cristo, o dom da graça de Deus; suscita no coração o desejo da água a jorrar para a vida eterna (Jo 4,14); abre o nosso olhar interior e ilumina as trevas da nossa vida, para que possamos viver como filhos da luz; e nos prepara para superar os limites da morte pela ressurreição com Cristo que é ressurreição e vida (Jo 11,25).

O papa Bento XVI, que na sua mensagem quaresmal evidencia a relação íntima entre o Baptismo e a Quaresma, afirma que o aprofundamento da graça baptismal nos estimula a libertar o nosso coração das coisas materiais e do vínculo egoísta com a terra, que nos empobrece e nos impede de estarmos disponíveis e abertos a Deus e ao próximo. Na verdade, para os baptizados a Quaresma há-de ser tempo de conversão, de purificação e de renovação interior, usando os meios que a Igreja, continuadora da obra de Cristo, coloca continuamente à nossa disposição.

A partilha dos bens é um dos meios mais nobres e, porventura, mais eficaz para nos levar à conversão do coração. Este ano, tendo em conta a difícil situação económica em que se encontram muitas famílias no nosso país, será também o mais necessário e urgente para ajudarmos a resolver os graves problemas por que estão a passar tantos irmãos nossos. Por isso, peço a todas as comunidades paroquiais e a todos os estimados diocesanos que se disponibilizem para ampliar os gestos de partilha de bens, dentro das suas possibilidades. Como nos diz a Sagrada Escritura no livro de Tobite, a partilha de bens é uma obrigação de todos. Dos que têm muito e dos que têm pouco. E quem dá deve fazê-lo tão generosamente que nunca fique com os olhos presos ao que tiver dado (Tob 4,16). Além disso, o cristão nunca pode esquecer que a esmola ultrapassa o nível dos gestos filantrópicos para se tornar um gesto religioso, que sempre andou ligado às celebrações litúrgicas e às festas. E por ela a alma se eleva para Deus, que proclama bem-aventurado aquele que pensa no pobre e no fraco (Sl 41,1).

O próprio Jesus Cristo, em muitos dos Seus ensinamentos, recomenda a esmola, feita desinteressadamente (Mt6,1), sem medida (Lc 6,30) e sem esperar nada em troca (Lc 14,14). Nos escritos do Novo Testamento, quando se fala de esmola e de partilha de bens não estão em causa apenas os bens materiais. Pois também os dons espirituais se podem e devem partilhar (Act 3,6). Por outro lado, o trabalho a favor dos necessitados é igualmente uma excelente forma de ajuda, como recomenda S. Paulo aos cristãos de Éfeso (Ef 4,28) e nos é solicitado a todos neste ano europeu dedicado ao voluntariado.

Espero que a vivência desta Quaresma ajude todos os diocesanos a viver intensamente a maravilhosa graça do Baptismo que fez de todos nós irmãos uns dos outros, chamados à partilha dos bens, dentro das possibilidades de cada um, e tendo sempre presentes as palavras de Jesus: a medida que usardes para os outros será também usada para vós (Lc 6,38). Se quisermos receber, temos que dar!

O produto da renúncia quaresmal deste ano destina-se a reforçar o fundo diocesano de apoio aos mais carenciados, que é gerido pela Caritas Diocesana, através dos seus serviços e, nomeadamente, dos vinte e um núcleos de apoio social, espalhados por toda a Arquidiocese.
Seguindo o modelo usado no ano passado, a seguir à Páscoa, os Vigários da Vara, depois de terem recolhido o produto da renúncia quaresmal de todas as paróquias da sua circunscrição, farão o favor de o enviar à Cúria Arquidiocesana que, por sua vez, o encaminhará para o seu destino.

Évora, 3 de Março de 2011
+José, Arcebispo de Évora

domingo, 6 de março de 2011

“Mas há alguém para quem Jesus não é nem pode ser um estranho, para quem o sacrário não é nem pode ser um desconhecido. Esse alguém, esses homens somos nós, os levitas do santuário, nós os sacerdotes. É por nosso intermédio que se opera o milagre estupendo da Eucaristia, é a nós que Jesus se confia e se entrega. Ora permiti, amados cooperadores, que vos pergunte: já fostes até junto do sacrário e ali, muito a sós com o divino Mestre, real e presente, tratastes da salvação do povo? Pedistes ali a inspiração das vossas obras de zelo? Se fordes procurar a causa da esterilidade de tantos trabalhos, encontrareis esta explicação muito simples: os ministros do santuário esqueceram-se de que tinham Jesus consigo, não lhe pediram conselho, não foram buscar nele a inspiração dos seus empreendimentos, e por essa falta neles, a faísca divina que se transmite às almas e ateia nelas o ardor das resoluções generosas.”
Servo de Deus
D. Manuel Mendes da Conceição Santos
Arcebispo de Évora de 1921 a 1955

quinta-feira, 3 de março de 2011

“Guarda o silêncio do coração, e não prestes atenção nem consideração aos pensamentos estranhos a Deus. Simplesmente não respondas aos pensamentos ilícitos; despreza-os, afasta-os com alegria para longe de ti e fecha quase com violência o teu coração. Guarda-o no silêncio para que nada entre ali senão com Aquele que só deve ser o objecto do teu pensamento Jesus-Deus. Que só Ele seja o habitante do teu coração, que jamais o abandone.”
(POR UN CARTUJO, [Lanspergio, monge Cartuxo (1489/90-1539)],
in “«Antologia de autores cartujanos», Itinerário de contemplación”,
Editorial Monte Carmelo, Burgos 2008, pg. 147)

Tradução do Castelhano ao Português da responsabilidade do autor deste blog.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Mensagem de Bento XVI para a Quaresma 2011
«Sepultados com Ele no baptismo,
foi também com Ele que ressuscitastes»

(cf. Cl 2, 12)

Amados irmãos e irmãs!
A Quaresma, que nos conduz à celebração da Santa Páscoa, é para a Igreja um tempo litúrgico muito precioso e importante, em vista do qual me sinto feliz por dirigir uma palavra específica para que seja vivido com o devido empenho. Enquanto olha para o encontro definitivo com o seu Esposo na Páscoa eterna, a Comunidade eclesial, assídua na oração e na caridade laboriosa, intensifica o seu caminho de purificação no espírito, para haurir com mais abundância do Mistério da redenção a vida nova em Cristo Senhor (cf. Prefácio I de Quaresma).
1. Esta mesma vida já nos foi transmitida no dia do nosso Baptismo, quando, «tendo-nos tornado partícipes da morte e ressurreição de Cristo» iniciou para nós «a aventura jubilosa e exaltante do discípulo» (Homilia na Festa do Baptismo do Senhor, 10 de Janeiro de 2010). São Paulo, nas suas Cartas, insiste repetidas vezes sobre a singular comunhão com o Filho de Deus realizada neste lavacro. O facto que na maioria dos casos o Baptismo se recebe quando somos crianças põe em evidência que se trata de um dom de Deus: ninguém merece a vida eterna com as próprias forças. A misericórdia de Deus, que lava do pecado e permite viver na própria existência «os mesmos sentimentos de Jesus Cristo» (Fl 2, 5), é comunicada gratuitamente ao homem.
O Apóstolo dos gentios, na Carta aos Filipenses, expressa o sentido da transformação que se realiza com a participação na morte e ressurreição de Cristo, indicando a meta: que assim eu possa «conhecê-Lo, a Ele, à força da sua Ressurreição e à comunhão nos Seus sofrimentos, configurando-me à Sua morte, para ver se posso chegar à ressurreição dos mortos» (Fl 3, 10-11). O Baptismo, portanto, não é um rito do passado, mas o encontro com Cristo que informa toda a existência do baptizado, doa-lhe a vida divina e chama-o a uma conversão sincera, iniciada e apoiada pela Graça, que o leve a alcançar a estatura adulta de Cristo.
Um vínculo particular liga o Baptismo com a Quaresma como momento favorável para experimentar a Graça que salva. Os Padres do Concílio Vaticano II convidaram todos os Pastores da Igreja a utilizar «mais abundantemente os elementos baptismais próprios da liturgia quaresmal» (Const. Sacrosanctum Concilium, 109). De facto, desde sempre a Igreja associa a Vigília Pascal à celebração do Baptismo: neste Sacramento realiza-se aquele grande mistério pelo qual o homem morre para o pecado, é tornado partícipe da vida nova em Cristo Ressuscitado e recebe o mesmo Espírito de Deus que ressuscitou Jesus dos mortos (cf. Rm 8, 11). Este dom gratuito deve ser reavivado sempre em cada um de nós e a Quaresma oferece-nos um percurso análogo ao catecumenato, que para os cristãos da Igreja antiga, assim como também para os catecúmenos de hoje, é uma escola insubstituível de fé e de vida cristã: deveras eles vivem o Baptismo como um acto decisivo para toda a sua existência.
2. Para empreender seriamente o caminho rumo à Páscoa e nos prepararmos para celebrar a Ressurreição do Senhor – a festa mais jubilosa e solene de todo o Ano litúrgico – o que pode haver de mais adequado do que deixar-nos conduzir pela Palavra de Deus? Por isso a Igreja, nos textos evangélicos dos domingos de Quaresma, guia-nos para um encontro particularmente intenso com o Senhor, fazendo-nos repercorrer as etapas do caminho da iniciação cristã: para os catecúmenos, na perspectiva de receber o Sacramento do renascimento, para quem é baptizado, em vista de novos e decisivos passos no seguimento de Cristo e na doação total a Ele.
O primeiro domingo do itinerário quaresmal evidencia a nossa condição do homens nesta terra. O combate vitorioso contra as tentações, que dá início à missão de Jesus, é um convite a tomar consciência da própria fragilidade para acolher a Graça que liberta do pecado e infunde nova força em Cristo, caminho, verdade e vida (cf. Ordo Initiationis Christianae Adultorum, n. 25). É uma clara chamada a recordar como a fé cristã implica, a exemplo de Jesus e em união com Ele, uma luta «contra os dominadores deste mundo tenebroso» (Hb 6, 12), no qual o diabo é activo e não se cansa, nem sequer hoje, de tentar o homem que deseja aproximar-se do Senhor: Cristo disso sai vitorioso, para abrir também o nosso coração à esperança e guiar-nos na vitória às seduções do mal.
O Evangelho da Transfiguração do Senhor põe diante dos nossos olhos a glória de Cristo, que antecipa a ressurreição e que anuncia a divinização do homem. A comunidade cristã toma consciência de ser conduzida, como os apóstolos Pedro, Tiago e João, «em particular, a um alto monte» (Mt 17, 1), para acolher de novo em Cristo, como filhos no Filho, o dom da Graça de Deus: «Este é o Meu Filho muito amado: n’Ele pus todo o Meu enlevo. Escutai-O» (v. 5). É o convite a distanciar-se dos boatos da vida quotidiana para se imergir na presença de Deus: Ele quer transmitir-nos, todos os dias, uma Palavra que penetra nas profundezas do nosso espírito, onde discerne o bem e o mal (cf. Hb 4, 12) e reforça a vontade de seguir o Senhor.
O pedido de Jesus à Samaritana: «Dá-Me de beber» (Jo 4, 7), que é proposto na liturgia do terceiro domingo, exprime a paixão de Deus por todos os homens e quer suscitar no nosso coração o desejo do dom da «água a jorrar para a vida eterna» (v. 14): é o dom do espírito Santo, que faz dos cristãos «verdadeiros adoradores» capazes de rezar ao Pai «em espírito e verdade» (v. 23). Só esta água pode extinguir a nossa sede do bem, da verdade e da beleza! Só esta água, que nos foi doada pelo Filho, irriga os desertos da alma inquieta e insatisfeita, «enquanto não repousar em Deus», segundo as célebres palavras de Santo Agostinho.
O domingo do cego de nascença apresenta Cristo como luz do mundo. O Evangelho interpela cada um de nós: «Tu crês no Filho do Homem?». «Creio, Senhor» (Jo 9, 35.38), afirma com alegria o cego de nascença, fazendo-se voz de todos os crentes. O milagre da cura é o sinal que Cristo, juntamente com a vista, quer abrir o nosso olhar interior, para que a nossa fé se torne cada vez mais profunda e possamos reconhecer n’Ele o nosso único Salvador. Ele ilumina todas as obscuridades da vida e leva o homem a viver como «filho da luz».
Quando, no quinto domingo, nos é proclamada a ressurreição de Lázaro, somos postos diante do último mistério da nossa existência: «Eu sou a ressurreição e a vida... Crês tu isto?» (Jo 11, 25-26). Para a comunidade cristã é o momento de depor com sinceridade, juntamente com Marta, toda a esperança em Jesus de Nazaré: «Sim, Senhor, creio que Tu és o Cristo, o Filho de Deus, que havia de vir ao mundo» (v. 27). A comunhão com Cristo nesta vida prepara-nos para superar o limite da morte, para viver sem fim n’Ele. A fé na ressurreição dos mortos e a esperança da vida eterna abrem o nosso olhar para o sentido derradeiro da nossa existência: Deus criou o homem para a ressurreição e para a vida, e esta verdade doa a dimensão autêntica e definitiva à história dos homens, à sua existência pessoal e ao seu viver social, à cultura, à política, à economia. Privado da luz da fé todo o universo acaba por se fechar num sepulcro sem futuro, sem esperança.
O percurso quaresmal encontra o seu cumprimento no Tríduo Pascal, particularmente na Grande Vigília na Noite Santa: renovando as promessas baptismais, reafirmamos que Cristo é o Senhor da nossa vida, daquela vida que Deus nos comunicou quando renascemos «da água e do Espírito Santo», e reconfirmamos o nosso firme compromisso em corresponder à acção da Graça para sermos seus discípulos.
3. O nosso imergir-nos na morte e ressurreição de Cristo através do Sacramento do Baptismo, estimula-nos todos os dias a libertar o nosso coração das coisas materiais, de um vínculo egoísta com a «terra», que nos empobrece e nos impede de estar disponíveis e abertos a Deus e ao próximo. Em Cristo, Deus revelou-se como Amor (cf 1 Jo 4, 7-10). A Cruz de Cristo, a «palavra da Cruz» manifesta o poder salvífico de Deus (cf. 1 Cor 1, 18), que se doa para elevar o homem e dar-lhe a salvação: amor na sua forma mais radical (cf. Enc. Deus caritas est, 12). Através das práticas tradicionais do jejum, da esmola e da oração, expressões do empenho de conversão, a Quaresma educa para viver de modo cada vez mais radical o amor de Cristo. O Jejum, que pode ter diversas motivações, adquire para o cristão um significado profundamente religioso: tornando mais pobre a nossa mesa aprendemos a superar o egoísmo para viver na lógica da doação e do amor; suportando as privações de algumas coisas – e não só do supérfluo – aprendemos a desviar o olhar do nosso «eu», para descobrir Alguém ao nosso lado e reconhecer Deus nos rostos de tantos irmãos nossos. Para o cristão o jejum nada tem de intimista, mas abre em maior medida para Deus e para as necessidades dos homens, e faz com que o amor a Deus seja também amor ao próximo (cf. Mc 12, 31).
No nosso caminho encontramo-nos perante a tentação do ter, da avidez do dinheiro, que insidia a primazia de Deus na nossa vida. A cupidez da posse provoca violência, prevaricação e morte: por isso a Igreja, especialmente no tempo quaresmal, convida à prática da esmola, ou seja, à capacidade de partilha. A idolatria dos bens, ao contrário, não só afasta do outro, mas despoja o homem, torna-o infeliz, engana-o, ilude-o sem realizar aquilo que promete, porque coloca as coisas materiais no lugar de Deus, única fonte da vida. Como compreender a bondade paterna de Deus se o coração está cheio de si e dos próprios projectos, com os quais nos iludimos de poder garantir o futuro? A tentação é a de pensar, como o rico da parábola: «Alma, tens muitos bens em depósito para muitos anos...». «Insensato! Nesta mesma noite, pedir-te-ão a tua alma...» (Lc 12, 19-20). A prática da esmola é uma chamada à primazia de Deus e à atenção para com o próximo, para redescobrir o nosso Pai bom e receber a sua misericórdia.
Em todo o período quaresmal, a Igreja oferece-nos com particular abundância a Palavra de Deus. Meditando-a e interiorizando-a para a viver quotidianamente, aprendemos uma forma preciosa e insubstituível de oração, porque a escuta atenta de Deus, que continua a falar ao nosso coração, alimenta o caminho de fé que iniciámos no dia do Baptismo. A oração permite-nos também adquirir uma nova concepção do tempo: de facto, sem a perspectiva da eternidade e da transcendência ele cadencia simplesmente os nossos passos rumo a um horizonte que não tem futuro. Ao contrário, na oração encontramos tempo para Deus, para conhecer que «as suas palavras não passarão» (cf. Mc 13, 31), para entrar naquela comunhão íntima com Ele «que ninguém nos poderá tirar» (cf. Jo 16, 22) e que nos abre à esperança que não desilude, à vida eterna.
Em síntese, o itinerário quaresmal, no qual somos convidados a contemplar o Mistério da Cruz, é «fazer-se conformes com a morte de Cristo» (Fl 3, 10), para realizar uma conversão profunda da nossa vida: deixar-se transformar pela acção do Espírito Santo, como São Paulo no caminho de Damasco; orientar com decisão a nossa existência segundo a vontade de Deus; libertar-nos do nosso egoísmo, superando o instinto de domínio sobre os outros e abrindo-nos à caridade de Cristo. O período quaresmal é momento favorável para reconhecer a nossa debilidade, acolher, com uma sincera revisão de vida, a Graça renovadora do Sacramento da Penitência e caminhar com decisão para Cristo.
Queridos irmãos e irmãs, mediante o encontro pessoal com o nosso Redentor e através do jejum, da esmola e da oração, o caminho de conversão rumo à Páscoa leva-nos a redescobrir o nosso Baptismo. Renovemos nesta Quaresma o acolhimento da Graça que Deus nos concedeu naquele momento, para que ilumine e guie todas as nossas acções. Tudo o que o Sacramento significa e realiza, somos chamados a vivê-lo todos os dias num seguimento de Cristo cada vez mais generoso e autêntico. Neste nosso itinerário, confiemo-nos à Virgem Maria, que gerou o Verbo de Deus na fé e na carne, para nos imergir como ela na morte e ressurreição do seu Filho Jesus e ter a vida eterna.
BENEDICTUS PP XVI
(tradução oficial do Vaticano)

terça-feira, 1 de março de 2011

PALAVRA DE VIDA
Março de 2011
Chiara Lubich
«Eis a serva do Senhor,
faça-se em mim segundo a tua palavra»
(Lc 1, 38)
(…) Assim como revelou a Maria, Deus quer revelar-nos aquilo que Ele pensou para cada um de nós. Quer dar-nos a conhecer a nossa verda­deira identidade. É como se dissesse: «Queres que eu faça de ti e da tua vida uma obra-prima? Então segue o caminho que te indico e serás aquele que, desde sempre, está no meu coração. De facto, eu pensei em ti e amei-te, pronunciei o teu nome desde toda a eternidade. Indicando-te a minha vontade revelo-te o teu verdadeiro eu».
Por isso, a Sua vontade não é uma imposição que nos limita, mas a revelação do Seu amor por nós, do projecto de Deus para cada um de nós. A Sua vontade é sublime como o próprio Deus, fascinante e magnífica como o Seu rosto: é Ele mesmo que se dá a nós. A vontade de Deus é um fio de ouro, é como uma rede divina que tece toda a nossa vida terrena e a Outra vida. Vai desde a eternidade até à eternidade: primeiro no pensa­mento de Deus, depois nesta Terra e, por fim, no Paraíso.
Mas, para que o desígnio de Deus se realize em plenitude, Ele pede o nosso consentimento, tal como o pediu a Maria. Só assim se realiza a palavra que Deus pronunciou sobre cada um de nós. Então também nós, tal como Maria, somos chamados a dizer:

«Eis a serva do Senhor,
faça-se em mim segundo a tua palavra»
(Lc 1, 38)
É verdade que a Sua vontade nem sempre é evidente para nós. Tal como Maria, também nós temos que pedir a luz para podermos compreender aquilo que Deus quer. É preciso ouvir bem a Sua voz dentro de nós, com toda a sinceridade, pedindo um con­selho a quem nos possa ajudar, se for necessário. Mas, uma vez compreen­dida a Sua vontade, queremos dizer-Lhe imediatamente sim. De facto, se compreendermos que a Sua vontade é o que de maior e de mais belo pode existir na nossa vida, não nos vamos resignar, apenas, a “ter” que fazer a Sua vontade. Pelo contrário, vamos gostar de “poder” fazer a vontade de Deus, de poder seguir o Seu projecto, para que se realize aquilo que Ele pensou para nós. É a coisa melhor e mais inteligente que podemos fazer.
As palavras de Maria – «Eis a serva do Senhor» – são, pois, a nossa resposta de amor ao Amor de Deus. Elas man­têm-nos sempre voltados para Ele, numa atitude de escuta e de obediên­cia, com o único desejo de cumprir a Sua vontade para sermos como Ele quer que sejamos.

Todavia, às vezes, aquilo que Ele nos pede pode parecer-nos um absurdo. Acharíamos melhor agir de outra maneira, ou gostaríamos de ser nós a pegar nas rédeas da nossa vida. Até nos pode vir o desejo de aconselhar Deus, de sermos nós a dizer-Lhe o que fazer e o que não fazer. Mas, se nós acreditamos que Deus é Amor e confiamos n’Ele, sabemos que tudo o que Ele prepara, de antemão, para a nossa vida e para a vida das pessoas que estão ao nosso lado, é para o nosso bem e para o bem dessas pes­soas. Então entreguemo-nos a Ele, abandonemo-nos com toda a con­fiança na Sua vontade, desejando-a com todo o nosso ser, até nos iden­tificarmos com ela. Sabemos que aceitar a Sua vontade é recebê-Lo a Ele, abraçá-Lo, encher-nos d’Ele.
Temos de acreditar firmemente numa coisa: nada acontece por acaso. Nenhum acontecimento (alegre, indi­ferente ou doloroso), nenhum encon­tro, nenhuma situação de família, de trabalho ou de estudo, nenhuma condição de saúde física ou moral é sem sentido. Mas, cada coisa – acon­tecimentos, situações, pessoas – é portadora de uma mensagem que vem de Deus. Todas as coisas con­tribuem para a realização do plano de Deus, que descobriremos pouco a pouco, dia após dia, fazendo, como Maria, a vontade de Deus.
«Eis a serva do Senhor,
faça-se em mim segundo a tua palavra»
(Lc 1, 38)
Como viver esta Palavra? O nosso sim à Palavra de Deus significa con­cretamente fazer bem, inteiramente, em cada momento, aquela acção que a vontade de Deus nos pede. Isto é, concentrarmo-nos totalmente nessa acção, eliminando tudo o resto, “per­dendo” pensamentos, desejos, recor­dações, acções que dizem respeito a outras coisas.
Diante de cada vontade de Deus – dolorosa, alegre, indiferente –, pode­mos repetir: «Faça-se em mim segun­do a tua palavra», ou, como Jesus nos ensinou no Pai-Nosso: «Seja feita a vossa vontade». Digamo-lo antes de cada nossa acção: «Faça-se…», «Seja feita…». E assim realizaremos, momento após momento, pedrinha ao lado de pedrinha, o maravilhoso, único e irrepetível mosaico da nossa vida, que o Senhor pensou, desde sempre, para cada um de nós.
Palavra de Vida, Dezembro de 2002, publicada integralmente em Città Nuova, 2002/22, p. 7.